Maracatus-nação ou de Baque Virado |
Sylvia Costa Couceiro Maracatus-nação: um pouco da sua história A grande maioria dos autores que estudaram e escreveram sobre os maracatus-nação tinham como uma das preocupações centrais de sua análise a questão da origem da manifestação. De Mário de Andrade a Guerra Peixe, passando por Câmara Cascudo e outros inúmeros autores, a maior parte deles, em maior ou menor grau, identifica a origem dos maracatus-nação nos festejos de Coroação dos Reis do Congo1 que ocorriam em diversas partes do Brasil desde o período colonial. Essa linha de raciocínio, que busca a todo custo identificar o nascedouro desse tipo de manifestação em sua pureza original africana, reforça a idéia que os maracatus-nação são produto único dessas tradições, descartando as misturas e transformações ocorridas ao longo dos séculos. O que podemos realçar é que as primeiras notícias da existência dos maracatus-nação confundem-se não apenas com as festas de coroação dos Reis de Congo, mas também com toda sorte de batuques e celebrações organizados pelos negros na segunda metade do século XIX. Nessa fase, eram comuns no Recife as reclamações nos periódicos sobre a manifestação, vista pelos segmentos de elite como ‘antro de vadios e desordeiros’, perturbadora da paz e do sossego público. O jornal A Província divulgava, em 1877, matéria mostrando a imagem que se tinha do folguedo na cidade:
Na virada do século XIX para o XX, espelhadas no liberalismo europeu e nas convicções “científicas” correntes na época, que acreditavam na inferioridade racial dos negros, as práticas culturais afro-descendentes passaram a sofrer intensa perseguição policial. As religiões foram criminalizadas, acusadas de práticas de curandeirismo/charlatanismo, sendo seus adeptos presos e denunciados por exercício ilegal da medicina. Os batuques, fossem eles de Xangô ou de Maracatu, invariavelmente recebiam inspeções da polícia, que prendiam seus praticantes e recolhiam os objetos de culto que encontravam nos terreiros. No início do século XX, Pereira da Costa, no livro Folk-Lore Pernambucano, faz a primeira descrição detalhada de um desfile de maracatu: consiste em um
Muitos escritores e intelectuais registraram suas impressões e experiências sobre os maracatus do Recife. Mário Sette, em Maxambombas e maracatus, relata suas impressões de menino, revelando seus medos e repassando a imagem dos maracatus como algo melancólico e sombrio. Fernando Pio, no livro Meu Recife de outrora: crônicas do Recife antigo, reproduz uma visão semelhante à de Mário Sette sobre a manifestação, utilizando uma série de adjetivos negativos, apesar de enfatizar o caráter pitoresco e interessante dos grupos. Nos anos trinta, José Lins do Rego no seu romance O moleque Ricardo apresenta visão similar sobre o maracatu, destacando-o como uma manifestação cujo ponto de destaque era a tristeza. As imagens construídas sobre o maracatu ao longo do século XX por viajantes, escritores e memorialistas são múltiplas e complexas, conforme podemos perceber, destacando sempre aspectos avaliados como negativos. Considerava-se o folguedo grotesco, melancólico e triste, animado por uma música repetitiva, barulhenta, inexpressiva, além de apresentá-lo como uma manifestação de certa forma frágil, uma vez que ela estava sempre correndo o risco de extinguir-se. Da perseguição policial à manifestação símbolo de Pernambuco Desde os anos 1930, quando da divulgação das idéias modernistas e da realização do 1º Congresso Afro-Brasileiro, vimos ocorrer um movimento de transformação na visão da sociedade sobre os maracatus-nação. Na busca de símbolos que representassem o estado de Pernambuco e seu povo, os intelectuais procuram na cultura popular a fonte de inspiração. Manifestações antes vistas como atrasadas, resquícios de um passado colonial que a todo custo se desejava esconder, passam a ser revistas, assumindo novos espaços no contexto cultural do Estado. Noite dos Tambores Silenciosos Em 1961, o jornalista e folclorista Paulo Vianna, junto com alguns intelectuais e participantes dos maracatus-nação, organizou uma cerimônia que reunia os grupos de maracatus-nação existentes na cidade do Recife, com o objetivo de prestar uma homenagem à memória dos negros que morreram no cativeiro. O espetáculo tem se repetido desde então, fazendo parte hoje do calendário carnavalesco do Recife, constituindo-se numa tradição que, tanto instituições públicas que organizam o carnaval quanto grupos de afro-descendentes fazem questão de manter. A cerimônia/homenagem foi chamada de Noite dos Tambores Silenciosos, e ocorre desde então toda segunda-feira de carnaval no Pátio do Terço, localizado no bairro de São José, espaço central da cidade. O evento é um marco de uma longa trajetória na história dos maracatus-nação, tomando-os como símbolos da cultura negra, e marcando também a sua significativa contribuição para a afirmação da identidade cultural do estado de Pernambuco. Novos toques e misturas Na atualidade os maracatus-nação constituem um forte ícone da cultura pernambucana, principalmente devido à incorporação de sua sonoridade na música produzida por grupos e pelas bandas locais surgidas nos anos 1990. O surgimento do Maracatu Nação Pernambuco e o novo momento na cena musical pernambucana, com o nascimento do movimento Manguebeat, propondo, dentre outras coisas, a fusão do rock com elementos considerados representativos da “verdadeira” e “tradicional” cultura pernambucana, como ritmos, danças, e outras práticas populares, trouxeram para o centro das atenções os maracatus. Promovendo verdadeira alquimia musical, Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S.A, e outras bandas, começaram a usar o som pesado e marcante das alfaias dos maracatus nos seus arranjos musicais, inaugurando um novo ciclo para a manifestação, elevando diante das camadas médias seu prestígio e importância. A participação dos maracatus-nação enquanto representante da cultura pernambucana tem se intensificado em eventos ao redor do mundo. Desde o início dos anos 2000, o percussionista Naná Vasconcelos participa, junto com mestres e mais de 700 batuqueiros de diversos grupos de maracatus-nação do Recife, da cerimônia de abertura oficial do carnaval da cidade. Depois de semanas de ensaios nos diferentes bairros e comunidades dos integrantes, grupos de diversas origens e diferentes toques fazem uma apresentação conjunta diante de grande público reunidos na Praça do Marco Zero, no bairro do Recife, sob a regência do percussionista, abrindo as festividades do carnaval. Assim, de folguedo discriminado e perseguido pela polícia, nas duas últimas décadas do século XX o maracatu é elevado à expressão máxima da cultura local, resumo do sentimento do “ser pernambucano”. Hoje, ao abrirmos os jornais, não encontramos mais as matérias preconceituosas sobre seus participantes, mas reportagens e manchetes que exaltam a força e vigor do ritmo e sua identificação com a cultura do povo do estado, como no Jornal do Commercio de janeiro de 2007
FONTES CONSULTADAS: MELLO E SOUZA, Marina. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de rei Congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. COMO CITAR ESTE TEXTO: COUCEIRO, Sylvia. Maracatus-nação. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: dia mês ano. Ex: 6 ago. 2009. |